
Categoria: Artigos
Data: 23/03/2024
Quem está familiarizado com o mercado esportivo sabe que nenhum esporte de alto rendimento começa com a equipe profissional. Os clubes não avaliam a lucratividade do negócio e a sua sobrevivência a partir de seu time principal, mas com as categorias de base. Os times buscam garotos com talento e investem na preparação de atletas profissionais que podem dar retorno esportivo e financeiro no futuro. Quanto mais cedo é criada no menino a disciplina de um atleta, maiores serão as chances do talento florescer para uma carreira profissional.
Esse padrão não é muito diferente do que precisamos aprender como famílias cristãs e como igreja. A permanência dos nossos filhos na fé cristã, o avanço do evangelho e até mesmo, por assim dizer, a sobrevivência da igreja no contexto cultural de uma determinada geração não carecem apenas daquilo que é falado e ensinado a jovens e adultos. Tudo começa com o investimento que fazemos nas categorias de base: nossas crianças.
Para tornar isso mais claro, é preciso lembrar que a família e os filhos ocupam uma posição central na Aliança e na história da salvação.
- A única coisa que Deus disse não ser boa antes do pecado foi a solidão: não é bom que o homem esteja só… (Gn 2.18). E, por causa disso, instituiu a família. Fomos feitos à imagem de um Deus Trino e que existe eternamente em uma relação harmoniosa, íntima e rica entre as três pessoas da divindade. Essa imagem e semelhança inclui a família. Ou seja, nossa vida familiar reflete, ainda que de modo débil, as perfeições de um Deus Trino.
- Quando o homem se rebelou contra a autoridade do seu Criador, a promessa de um redentor não veio senão por meio da família e dos filhos: “Porei inimizade entre você e a mulher, entre os seus filhos e os filhos dela. O Filho da mulher ferirá sua cabeça, enquanto você apenas ferirá o calcanhar dele.” (Gn 3.15, paráfrase).
- Quando Deus escolheu Abraão para estabelecer uma Aliança, disse: “Estabelecerei uma aliança entre mim e você e os seus filhos no decurso das suas gerações, aliança perpétua, para ser o seu Deus e o Deus dos seus filhos. (...) Deus disse ainda a Abraão: — Guarde a minha aliança, você e os seus filhos no decurso das suas gerações”. (Gn 17.7,9). Veja que o relacionamento para o qual Deus chamou Abraão não era exclusivamente dele, mas se estenderia, por meio da sua influência como cabeça, para toda a família.
- E logo adiante, Deus lembrou: “Porque eu o escolhi para que ordene aos seus filhos e a sua casa depois dele, a fim de que guardem o caminho do Senhor e pratiquem a justiça e o juízo, para que o faça vir sobre Abraão o que lhe prometeu.” (Gn 18.19)
- Depois de liderar a conquista da terra prometida, Josué relembra a Aliança do Senhor com o seu povo, insistindo para que abandonassem os ídolos. Nesse momento, manifesta sua própria opção: “Eu e a minha casa serviremos ao Senhor”. (Js 24.15)
- Depois que a promessa do Redentor se cumpriu, Pedro pregou a uma multidão e disse: “Porque a promessa é para vocês e para os seus filhos, e para todos os que ainda estão longe… (At 2:39)
Assim, essas e outras passagens nos lembram que tanto a origem quanto os propósitos da família se deram no contexto da Aliança que Deus estabeleceu com sua criação e, muito especialmente, com o povo que escolheu. Ele nos chama para um relacionamento de redenção cujas promessas se estendem aos nossos filhos por meio da influência que exercemos sobre eles. E aí reside o papel central da família na transmissão da verdadeira fé às próximas gerações.
Isso acontece especialmente pelo ensino bíblico no lar ou do culto doméstico. Muito embora não exista nenhuma prescrição na bíblia a respeito do culto doméstico como o conhecemos, a Escritura está repleta de passagens que valorizam o ensino bíblico em família:
- O salmista diz: “O que ouvimos e aprendemos, o que os nossos pais nos contaram, não o encobriremos a nossos filhos; contaremos à geração vindoura os louvores do Senhor, e o seu poder, e as maravilhas que fez.” (Sl 78.3,4). E completa nos versos seguintes dizendo que isso foi uma ordem dada por Deus para que os nossos filhos e os filhos dos seus filhos não se esqueçam do que Ele fez e aprendam a colocar a sua confiança somente Nele (vv. 5-7).
- No Novo Testamento isso não é diferente. O apóstolo Paulo encoraja os pais a criarem os filhos “na disciplina e na admoestação do Senhor” (Ef 6:4).
Percebemos com isso que os pais são os principais responsáveis pela instrução bíblica e pela vitalidade espiritual das suas famílias. Deus nos dá crianças e nos dá a missão de marcá-las com o evangelho de tal modo que elas deem continuidade a missão de Deus na história. Os pastores, as escolas bíblicas e a igreja como família da Aliança tem aí um papel auxiliar. Cabe aos pais ensinar a seus filhos a verdadeira fé. E exatamente nesse sentido, o culto doméstico é uma poderosa ferramenta de discipulado. Por isso, Deuteronômio 6.1-9 é fundamental porque nos apresenta princípios práticos para o culto doméstico e o ensino bíblico no lar:
1. Intencional
Você as inculcará a seus filhos, e delas falará quando estiver sentado em sua casa, andando pelo caminho, ao deitar-se e ao levantar-se (v.7). O que se pressupõe aqui é um ensino intencional. Não é algo que simplesmente acontece sem que o momento tenha sido preparado. Realizar o culto doméstico requer, portanto, que os pais se preparem de modo que esteja claro para todos os membros da família o que vai acontecer durante o culto doméstico.
E o que vai acontecer no culto doméstico? Com segurança, podemos dizer que é preciso ensino bíblico por meio da leitura regular da Escritura, seguido por perguntas, respostas e instruções sobre o evangelho. A forma, o tamanho do texto lido, o tempo gasto, os recursos de memorização, a complexidade das questões vai variar muito de acordo com a idade dos filhos. Porém, em um culto doméstico intencional, a instrução na Palavra de Deus e a oração são indispensáveis.
2. Persistente
Você as inculcará a seus filhos, e delas falará quando estiver sentado em sua casa, andando pelo caminho, ao deitar-se e ao levantar-se (v.7). A ideia é de que o culto doméstico e o ensino bíblico no lar precisam ser persistentes e habituais. Isso significa que é necessário priorizar na agenda da família um momento para que isso aconteça, permitindo que esse momento se torne regular e consistente. É melhor ter 10 ou 20 minutos de culto doméstico a cada dia do que gastar períodos longos em uma dia, porém sem regularidade.
Cada família tem uma rotina peculiar, o que pode fazer com que esse momento varie muito. Algumas terão mais facilidade de reservar um momento pela manhã, outras no horário de alguma refeição, outras antes de dormir. O importante é que o horário combinado esteja claro para todos.
Não ceda às desculpas para evitar o culto doméstico. Primeiro, não diga que você não faz o culto doméstico porque não tem tempo, afinal todos tem tempo para o que é prioridade. Segundo, não fuja por causa de algum pecado. Se você perdeu a paciência com o filho ou teve alguma rusga com o cônjuge, não cancele o culto doméstico achando que seria hipocrisia. Você não precisa fugir de Deus nessas horas. Aproveite o momento para experimentar o arrependimento e a fé na cruz de Jesus Cristo mais uma vez. Peça perdão. Seus filhos aprenderão o evangelho com isso.
3. Mnemônico
“Também deve amarrá-las como sinal na sua mão, e elas lhe serão por frontal entre os olhos. E você as escreverá nos umbrais de sua casa e nas suas portas”. (vv.8-9). Esta é uma aplicação específica do verso anterior. No culto doméstico, além de fazer da Escritura assunto recorrente, é importante também criar mecanismos de memorização do evangelho de modo que fiquem inculcadas (v.7) e, então, guardadas no coração (v.6).
A memorização bíblica é absolutamente fundamental para a formação espiritual. É uma maneira fundamental de encher as nossas mentes com o que é necessário para ela. Para isso, você pode encerrar a reflexão do culto doméstico, decorando com seus filhos, por meio da repetição, um versículo ou alguma porção da Escritura que foi lida ou uma pergunta do breve catecismo ou do catecismo para crianças pequenas.
Além disso, pode usar outras ferramentas. A música aqui é um recurso inigualável. O Salmo 118 diz: “Nas tendas dos justos há voz de júbilo e de salvação: A mão do Senhor faz proezas…” (v.15). Isso é uma referência explícita ao cântico que é entoado com alegria nas tendas. Isso envolvia o canto em família. Quando cantamos a Palavra de Deus, obtemos instrução e a nossa memória é marcada. Cantar promove a devoção, ao mesmo tempo ensina o nosso coração a lembrar das verdades bíblicas. Por isso Paulo recomendou: Que a palavra de Cristo habite ricamente em vocês. Instruam e aconselhem-se mutuamente em toda a sabedoria, louvando a Deus com salmos, hinos e cânticos espirituais, com gratidão no coração. (Cl 3.16)
Outra possibilidade é criar um ambiente em sua casa no qual estejam cercados da Palavra de Deus e de lembretes das suas bênçãos. É possível, por exemplo, emoldurar pequenos quadros com versículos bíblicos, sempre relacionando o local à passagem. Por exemplo, perto do interruptor pode estar “Eu sou a Luz do mundo” (Jo 8.12) ou próximo à cama “Em paz me deito e logo pego no sono, porque, Senhor, só tu me fazes repousar seguro” (Sl 4.8) etc.
No livro “Mobiliando a Casa”, o autor fala sobre uma prateleira de memórias onde podemos colocar objetos que relembram bênçãos e livramentos do Senhor. Isso aguça a curiosidade das crianças, provocando um diálogo que remete aos grandes feitos de Deus. É o mesmo recurso pedagógico que Deus ordenou a Israel para a celebração da Páscoa na antiga aliança: "No futuro, quando os seus filhos perguntarem: Que significa isto?” (Ex 12.26)
Nossos filhos precisam de rituais consistentes que vão marcar suas vidas.
4. Exemplar
Moisés diz aqui que, para que os “filhos e os filhos dos seus filhos temam o Senhor” (v.2), os pais devem amar a Deus sobre todas as coisas, abandonar os ídolos do coração (vv.4-5). Todo ensino começa com exemplo. Isso gera influência na vida dos nossos filhos e, depois, dos netos.
Porém, se não refletirmos no comportamento o verdadeiro arrependimento (deixar os ídolos) e fé (amar a Deus sobre tudo), nossos filhos simplesmente seguirão nossas regras enquanto estiverem sob nossa vigilância. Mas assim que ganharem independência, tomarão decisões baseadas nos valores de uma cultura pagã. Por isso nosso exemplo e liderança são cruciais. Fala muito mais alto na vida deles os valores que você transmite nas suas prioridades do que naquilo que você diz crer.
Como fazer?
I - Defina o momento de modo a permitir a persistência e a regularidade.
- Escolha o momento mais adequado para sua família. A ideia de ter toda a família ao redor da mesa ou no sofá da sala é muito agradável, mas pode não ser factível.
- A correria do dia permite que alguns tenham a família reunida apenas no percurso de levar as crianças para a escola ou alguns instantes antes do horário de dormir. Nesse sentido, utilizar esses poucos minutos e essas ocasiões é melhor do que deixar de realizar o culto doméstico.
II - Estabeleça um roteiro básico.
- Defina o que será feito no culto doméstico.
- Escolha os textos de acordo com a faixa etária dos seus filhos.
- Em uma família com crianças muito pequenas ainda não alfabetizadas, leia com elas alguns versículos da Bíblia e selecione um texto para decorar em família. Repita-o várias vezes juntos, em voz alta, e então reforce seu ensino. Você pode também contar uma história ou uma parábola, reforçar seu ensino e memorizar com ela um verso com alguma música infantil. Importante é ficar atento aos filhos menores, pois sua atenção é limitada. Seja breve e objetivo.
- À medida que as crianças são maiores e aumenta o nível de alfabetização, o tempo gasto pode aumentar um pouco. Você pode, por exemplo, ler o livro de Provérbios durante um mês, um capítulo por dia, reforçando a sabedoria bíblica e decorando alguns dos provérbios. Isso pode ser repetido mais de uma vez ao longo do ano, decorando ou reforçando novos ensinamentos de sabedoria a cada releitura.
- Livros auxiliares também podem ser usados, como devocionários ou a leitura, explicação e memorização das perguntas do breve catecismo. Mas não deixe que estes livros substituam a leitura da Bíblia.
- Outros recursos como gincanas bíblicas também podem ser instrutivas para memorização de alguns acontecimentos bíblicos ou das sequência dos livros da Bíblia.
III - Seja cristocêntrico ao explicar alguma história:
- Não fique apenas nos exemplos morais do tipo: precisamos “ser como Davi”.
- Procure explicar como o texto bíblico pode levar ao arrependimento, à fé na obra salvadora de Jesus ou à confiança no poder soberano de Deus, por exemplo.
IV - Defina a ordem.
Pode começar com uma oração, a leitura e explicação. Uma memorização (ou cântico) e encerrar com orações de todos.
V - Seja breve e simples.
Devoções simples e rápidas são, no geral, mais eficientes do que longos momentos de discussões teológicas.
VI - Faça aplicações.
O que significa o trecho lido? Que características de Deus podemos encontrar? O que o texto apresenta sobre Jesus? De que pecado preciso me arrepender? Eu posso ter mais esperança quando me lembro do que foi lido?
VII - Estimule a memorização.
Use a música, se tiver facilidade. Promova a criação de lembranças concretas da graça e fidelidade de Deus em sua família.
VIII - Promova a participação.
Deixe que as crianças que já são alfabetizadas leiam e que todos façam uma oração. Para as crianças muito pequenas, ore com ela uma oração breve de modo que ela repita e aprenda. Estimule para que todos compartilhem seus motivos de gratidão e seus pedidos. Faça também algumas perguntas para que possam interagir com o que você estiver explicando.
IX - Vá além do culto doméstico.
Aproveite outros momentos naturais e espontâneos que se apresentam muitas vezes durante o dia para comunicar a fé em meio aos acontecimentos corriqueiros, como orar e confiar em Deus durante algum momento de mal estar, ao arrependimento e confiança em Jesus quando fizer alguma pirraça etc.
Para refletir e praticar
A influência de Josué era tão ampla, que a maioria da nação seguiu seu exemplo, pelo menos durante uma geração: “Israel serviu o Senhor todos os dias de Josué e todos os dias dos anciãos que ainda sobreviveram por muito tempo depois de Josué e que sabiam de todas as obras que o Senhor tinha feito por Israel.” (Js 24.31)
A Bíblia relata como Timóteo foi um instrumento a serviço do evangelho na companhia de Paulo. Porém, deixa claro que a fé de Timóteo não começou com ele: “Lembro da sua fé sem fingimento, a mesma que, primeiramente, habitou em sua avó Loide e em sua mãe Eunice, e estou certo de que habita também em você.” (2Tm 1.5). A fé de sua avó e sua mãe foram a base para quem Timóteo viria a se tornar. Por isso, não subestime as marcas que você pode deixar em seus filhos. Você pode estar criando uma plataforma para alguém que poderá ser poderosamente usado por Deus no futuro.
Que encorajamento é para os pais saber que a adoração que eles iniciaram no lar poderá permanecer por muitas gerações depois deles!
- O que você tem investido de si mesmo para influenciar a sua descendência?
- Você tem apresentado Deus a seus filhos? Frequentemente queremos apresentar nossos filhos a Deus, mas nos esquecemos de apresentar Deus aos nossos filhos.
- Você percebe que os benefícios do culto doméstico vão além das crianças e adolescentes?